Feliz aniversário!

Renato Magalhães Rocha
2 min readSep 17, 2017

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Finalmente uma música que conhecia! Fechou os olhos e teve seu corpo levado pelo som como se estivesse flutuando no ar. Reconhecia-se feliz quando sentiu forte turbulência. Saindo do transe, abriu seu olhos e voltou à realidade: seu celular vibrava.

Se confrontado, talvez não admitisse nem a si mesmo que, durante aquele mísero intervalo de tempo que levou para pegar do bolso o aparelho, passou por sua mente aquele sonho que por tantas vezes entretivera, até mesmo acordado. Tudo apontava, entretanto, que continuaria sendo apenas ilusão derradeira. Naquela noite, não mais se decepcionaria caso a realidade mais uma vez padecesse frente a fantasia. Afinal, era já outra época. Não… “época” sugere algo antigo demais: era outra estação. Assim está melhor.

"Feliz aniversário!" — dizia a mensagem de texto. A foto já era outra, mas aquele olhar capaz de congelar seu fogo e incendiar sua frieza ainda continuava o mesmo. Tentou desenhar na tela seu código de desbloqueio e falhou por três vezes consecutivas. Acreditando ser para o bem, desistiu e fechou os olhos para voltar à sua viagem aérea quando ouviu uma voz tímida a repetir aquelas duas palavras. Seu coração saltou como boi fustigado em rodeio e foi a força desses galopes que virou seu corpo colocando-o cara a cara com seu peão. Esboçou uma explicação qualquer quando foi interrompido, ainda balbuciando, por doce sorriso e carinhosos braços que se penduraram em seu pescoço.

Ao ver a pele do outro autorizando sua entrada ao primeiro toque das digitais, silenciou com um piscar de olhos todos os pensamentos que latejavam em sua cabeça e transformou aquele fim de abraço no início de um beijo que há muito o assombrava. Suas bocas engoliram-se sedentas feito alcoólatra em recuperação entregando-se ao vício no momento de desespero. Tal qual a areia quente da praia sorve o frio licor de sal que lhe abranda sede e febre, suas línguas bebiam-se com desespero e ainda pediam mais.

Os dois corpos abusavam-se com fome e eles não pareciam inclinados a desistir de ocupar o mesmo lugar no espaço. Moviam-se sob hipnotizante coreografia naquela dança-luta e era como se tentassem, ao mesmo tempo, aplacar a saudade acumulada com abraços e sorrisos enquanto puniam-se mutuamente pelo afastamento com mordiscadas e puxões de cabelo. Assanharam-se, excitaram-se e gozaram-se em público até que não mais puderam esperar. Saíram da festa e dirigiram-se, ainda calados, ao destino que os dois já sabiam de antemão qual era.

Consumaram-se. Consumiram-se. Confundiram-se.

Na manhã seguinte, estirado em sua própria cama, ele já sonhava novo sonho assim como o vaso transparente que repousava na mesa sob a janela, servindo de caixão para esqueletos de caules e pétalas, suspirava para as árvores da rua a sonhar com novos e perfumados arranjos florais.

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Renato Magalhães Rocha

escrevo — visto que morrer soa assaz trágico e apodrecer é algo físico